Guerra cultural: o lado irado do guerreiro pacifico

"Não se opor ao erro é aprová-lo. Não defender a verdade é negá-la". (São Tomás de Aquino)

“Dance, quando você se sentir machucado. Dance, quando você tirar o curativo. 
Dance enquanto luta. Dance em seu sangue. Dance enquanto se liberta ” (Rumi)


Um dos trechos mais famosos do Mahabharata, poema épico da tradição hindu-indiana, é o Bhagavad Gita “Canção do Divino Mestre”, e que descreve a recusa e relutância de um piedoso Arjuna em querer lutar numa batalha fratricida, após a falha em se chegar a uma saída pacifica, tendo em vista que os oponentes seriam o seu próprio povo, membros de sua clã, amigos e conhecidos de outrora. E, por outro lado, o incentivo de Sri Krishna, encarnação divina, para que Arjuna se recorde de sua condição de guerreiro e que vá a luta para proteger a retidão e a justiça, participando da guerra. Eis aqui nessa passagem talvez o maior dilema da práxis da espiritualidade desde a antiguidade até os tempos atuais!

Afinal, é verdade que precisamos exercitar um olhar que abençoa! Se miramos a paz, se buscamos a felicidade e desejamos o bem comum, a fraternidade entre as pessoas, então devemos aspirar isso não só como meta, mas principalmente, como prática. Podemos reconhecer que o diálogo nesse sentido é fundamental. A gratidão, necessária. A generosidade, uma dádiva, um celebrar a gratuidade da vida. Do mesmo modo, orar, ter fé, aprender a reverenciar o sagrado em todas as coisas. Exercitar a compaixão. Meditar, silenciar ou aquietar a mente. E AMAR acima de tudo. Essa espiritualidade “solar” que nos incentiva “ao bom, ao verdadeiro e ao belo” em nossas relações e na vida, é sem dúvida alguma, uma fonte inesgotável de energia e uma dimensão essencial da nossa existência.

Todavia, o que fazer diante da maldade, da mentira e do radicalismo dos que ignoram tudo isso e querem nos manipular e ferir? Abençoá-los? Orar e meditar por eles? Enviar-lhes luzes coloridas? Sermos piedosos? Em parte, pode até ser... Mas será que isso basta? Como dialogar com quem quer te calar, te ofender ou até te eliminar? Como se defender no ato de quem deseja te agredir? Ou de quem quer te enganar e explorar? Como lidar com quem pensa a realidade de modo invertido? Até onde a tolerância é saudável? Então, não devemos “vigiar e punir” como dizem os teóricos relativistas? Será que não existe algum tipo de punição que seja educativa? E o nosso direito a legitima defesa, onde fica? Ademais, quais são as reais intenções daqueles que filosofam e criam teses sofisticadas favorecendo a impunidade na sociedade?

Ou em outras palavras: Como lidar com as artimanhas e os ilusionismos dos que são especialistas em ocultar a sua maldade? Como identificar aqueles que disfarçam como ninguém a sua duplicidade? Como proceder quando a circunstancia nos defronta com o lado escuro da vida e uma espiritualidade de visão “noturna” nos é exigida? Como identificar o mal no ato, revelá-lo e tirá-lo da sombra? Até onde uma demasiada benevolência não oculta as nossas próprias mazelas espirituais, a nossa insanidade, o nosso desejo de sofrer, a nossa agressividade não reconhecida e que se volta contra nós? Até que ponto não ocultamos algum mal que não queremos ver, nem sentir ou reconhecer em nós mesmos? Até onde, em nossa ingenuidade perversa, de hipócritas tentando ser politicamente corretos ou não julgadores e sujeitos compassivos, não estamos voluntariamente dando a corda a quem dissimuladamente deseja nos enforcar?

Ora, podemos aceitar a existência da loucura alheia, da psicose e até da histeria dos séquitos padecentes que não desejam ver a verdade, mas não somos obrigados a nos submeter a esses ou permitir-lhes envolver-nos a todos em suas insanidades. Aceitar não é o mesmo que se submeter. Posso aceitar a ignorância ou a fraqueza humana de caráter que leva a corrupção, mas não posso nunca fazer vista grossa a ela, ou justificar atos individuais pelo “sistema corrompido”, na ânsia de anistiá-los ou minimizá-los, promovendo assim uma cultura de impunidade ou de falseamento da coexistência de uma responsabilidade também pessoal. Isso é perversão! É uma inversão de valores muito perigosa e quem o faz, seja por desonestidade intelectual ou inocência, busca o sofrimento, seja como algoz ou como vítima. E é um serviçal da maldade existente nesse mundo.

Em todos os segmentos da sociedade estamos nos defrontando com uma polarização de dilemas morais que parecem jogar-nos uns contra os outros, de modo que uma "guerra cultural" tem ocorrido em meio às próprias instituições que nos atravessam, e assistimos colegas, amigos, vizinhos e concidadãos com visões tão radicalmente incoerentes que parecem ter sido cooptados por algum esquema muito engenhoso de lavagem cerebral. Somos surpreendidos pela virulência de uma mentalidade subversiva, cínica, coletivista e revolucionária, que parece ter se infiltrado a tal ponto que já não se pode mais crer na credibilidade das próprias instituições, tendo em vista não estarem imunes à má influência e a estandardização da patifaria, da desfaçatez e da corruptela degradante entre os seus e nas entranhas de suas malhas burocráticas ou funcionais.

Então vemos juízes, desembargadores, advogados, engenheiros, psicólogos, ativistas sociais, políticos, professores, empresários, religiosos, jornalistas, cidadãos em geral, replicando retóricas relativistas intelectuais ou acadêmicas tão falseadoras da moral que chegam ao ponto de confundir direitos humanos com salvo-conduto para a delinquência e a criminalidade, de modo que nos deparamos com uma sociedade tão malsã que parte de seus cidadãos põem-se a proteger bandidos e a idolatrar corruptos em nome de ideologias pretensamente bem intencionadas ou coletivistas, ou ainda pior, pelo infame, grotesco e repugnante culto a personalidades escandalosamente suspeitas ou comprovadamente desonestas.

No entanto, admissível mesmo seria apenas proteger o lado humano do bandido e nunca o lado bandido do ser humano. Teorias de subversão de valores têm sido aplicadas em nossas legislações deformando completamente o sistema de modo que vemos um grupo de algozes sendo protegidos pelo Estado, enquanto as vítimas acabam sendo desamparadas. Ou seja, o lado humano de ambos é ignorado, pois a inversão de valores é tamanha que se vitimiza o lado algoz do vilão, numa apologia a sua desumanidade e se despreza o lado humano da vítima.

Assim, assistimos atônitos a uma profusão de direitos “desumanos” sendo disseminados e defendidos em nossas instituições por intelectuais orgânicos, teóricos relativistas e burocratas de moral invertida e caráter deformado, mas devidamente velados pelo discurso do politicamente correto.

A subversão dos valores em nossa sociedade é uma das facetas mais evidentes da recorrência de um lado sombrio demasiadamente humano atuante por detrás de todas as tensões sociais em que a racionalidade encontra-se dissociada das dimensões emocional e espiritual do inconsciente profundo. O lado intelectual em seu viés doutrinário pérfido, em sua razão instrumental e erudição verborrágica relativista pode inclusive criar sofisticados mecanismos repressores para manter essa cisão, fazendo uso desde retóricas políticas, a religiosas e cientificas, e a criação de falsas narrativas sem nenhum compromisso com a verdade, mas apenas a manutenção do poder.

Então, essa outra face da espiritualidade, não solar, mas noturna, sombria e oculta, também precisa urgentemente da nossa atenção, pois é aqui que muitos se desviam e se perdem de si mesmos, deixando-se enganar, alienar e sofrer. Ou seja, devido a essa face psicoespiritual oculta e não revelada que tememos “ver” e “sentir” em nós mesmos e que por isso mesmo, também não percebemos no outro quando esse intenciona ocultá-la de nós, acabamos nos deixando envolver por uma rede subtil de manipulações que se aproveita da nossa dissociação afetiva, da fragmentação do nosso ser e decorrente falta de autoconsciência.

Se somos dissimulados a respeito do mal que subsiste em nosso interior, enquanto oposto natural do bem, e que se esconde em nossa sombra, em nosso inconsciente, e que se manifesta em nosso comportamento sempre através do contraditório, do ambivalente, então, também não iremos ver a dissimulação do outro, a sua face mais sombria e a sua maldade enganadora, a não ser talvez quando já for tarde demais e já tivermos sido golpeados. E então, os malvados e seus seguidores, alguns apenas inocentes úteis, ainda irão tentar convencê-lo de que o golpista é você ou de que eles nada têm a ver com isso.

Toda a pessoa boazinha e compassiva demais com outros pode estar a ocultar de si as suas culpas e ressentimentos, os seus recalques. Faz tudo pelos outros e acaba se deixando explorar na ânsia de agradar. É a vítima perfeita das corrupções, dos falsos profetas e gurus, bem como, dos líderes psicopatas e totalitários e seus discursos populistas ou quiméricos. Os maus adoram os bonzinhos, pois esses são as suas vítimas prediletas. Os bons ou benevolentes e os maus ou malevolentes, parasitam uns aos outros. Por isso, a forma mais eficaz de escravidão é a mental e as piores prisões são as psicológicas e ideológicas, pois nelas os escravos defendem as suas próprias correntes, se sentindo protegidos pelo seu senhorio ou por alguma ordem coletiva. Os frágeis de espírito ou carentes de afeto são sempre bajuladores e bajulados, viciados em poder. Eis a debilidade humana que leva aos totalitarismos, as ditaduras e ao servilismo estatal, religioso, intelectual, midiático, partidário, cientifico, financeiro, etc.

Essa fragilidade emocional, espiritual ou ignorância ancestral da ambivalência humana, é o que nos leva a adoração ao poder e a idolatria aos poderosos, aos salvadores, mestres, doutores, políticos, excelências, celebridades, santidades e gurus de todos os tipos! Tanto que frequentemente quando os psicopatas dominam o poder na sociedade, e isso é muito mais comum do que se imagina, o fingimento histérico da população se torna um modo de subserviência.

O mal é sempre ilusionista, visa nos envolver e enganar, a fim de nos manter escravizados, pois em algum nível ainda precisa de nosso consentimento interno para atender ao seu parasitismo. Portanto, é preciso revelá-lo, tirá-lo da sombra, parar de querer sofrer e ter coragem de encara-ser a fundo e através das relações.

Afinal, podemos claro, florir ao invés de ferir. Agora, diga a isso a um psicopata, entregue flores aos nazistas ou aos comunistas para ver se isso iria impedi-los de te jogar num campo de concentração! Discorde da agenda obtusa dos revolucionários culturais da atualidade para ver se eles não irão tentar assassinar a tua reputação ou te condenar ao ostracismo. Amar não é só deixar de ferir o outro, mas é defender-se de quem te fere. Quando nos defendemos legitimamente, paramos de deixar o outro nos ferir e isso é o melhor que pode acontecer para ambas as partes, até mesmo dentro de uma lei de causa e efeito, ou de justiça de vida; pois, quando fazemos isso, paramos de nos fazer vítimas e contribuímos para impedir que os outros continuem logrando êxito como algozes, proliferando o mal e o sofrimento nesse mundo.

Assim, necessitamos desse autocuidado, dessa autoconsciência, desse autoamor. Por isso, o caminho do amor é também uma trilha para quem é “guerreiro”, para quem deseja a autenticidade e a plenitude de ser e que não titubeia em mostrar a sua face irada diante das injustiças, iniquidades e violências do mundo, nem vacila em entrar em ação a partir dessa ira, e não necessariamente com ela, usando-a como um sinalizador do que está a nos ferir, nos demandando atitude, ou do que se deve parar de querer controlar e transmutar internamente. Desse modo, podemos assumir o compromisso em aplicar essa energia vital para nos posicionarmos com assertividade e discernimento frente ao mal e seus ilusionistas, criando limites e interdições, olhando firme para dentro e para fora, atentos ao que é luz e ao que é sombra, lutando conscientemente na legitima defesa dos valores universais e da justiça.

Precisamos de um olhar que abençoa, mas também de um olhar com coragem daquele que se dispõe a encarar o abismo escuro dentro de si. Pois, mesmo que esse nos encare de volta, nada mais é do que parte de nós mesmos que devemos acolher e tornar consciente em nossa jornada de autodescoberta.

Portanto, se almejamos a liberdade, nos tornar íntegros, precisamos contemplar a integralidade da vida, e não apenas as facilidades enganosas de se viver só de conveniências, nos dissociando e tornando perigosos ao nosso entorno. Devemos conscientizar-nos de que podemos sempre encontrar as bênçãos do êxtase divino no repouso da quietude, e a bendita paz interna na “não ação”, em nos dissolvendo no silêncio, na “terra prometida” de nosso próprio “espaço sagrado interior”, tanto quanto, nas ações com ética, amorosidade e retidão nas relações sociais exteriores, nas batalhas diárias que encaramos desde dentro com presença, inteireza e dignidade perante o mundo dos fenômenos.


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